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quarta-feira, 16 de março de 2011

dra. Zilda Arns, sempre ...

Os príncipes e os mendigos

Cada um de nós poderia trocar de casa com um miserável por três dias.
A miséria é a pior criação do ser humano. Deparo com ela constantemente e a sinto como uma chaga social sem explicações, prova concreta do egoísmo e do desatino da sociedade. Uma sociedade que nem consegue ver o prejuízo com a exclusão social de pessoas que poderiam ajudar no desenvolvimento social e econômico e que não o fazem por falta de alternativas de sobrevivência.
Somos uma sociedade que prima pelo fosso entre ricos e pobres. Ignoramos que a concentração de renda é o indicador fiel da violência.
Por que não reverter a situação com a prevenção, gerando igualdade de oportunidades e condições de vida digna?
A miséria é como uma sombra que me acompanha: sinto-me atraída por ela desde a adolescência. Nasci em zona rural, no interior de Santa Catarina, em Forquilhinha, onde em meu tempo não havia miséria e todas as crianças freqüentavam a excelente escola Sagrada Família, de origem alemã. O esporte, o coral e a arte faziam parte de nosso lazer.
Talvez por isso e pela minha formação cristã, nunca pude entender por que não se investe mais na pessoa, centro da criação divina, para quem todos os interesses deveriam convergir.
Para o equilíbrio da família e do país, todos os esforços deveriam se articular para que as pessoas fossem felizes e solidárias umas com as outras. As classes sociais, os partidos políticos, as religiões e todas as raças deveriam se inclinar diante da dignidade das pessoas, especialmente das crianças.
Em minha missão de médica, pediatra e sanitarista, e ainda como coordenadora da Pastoral da Criança, defronto permanentemente com a miséria absoluta nos bolsões de pobreza onde nossos mais de 130 000 líderes comunitários atuam, apoiados por 6 414 equipes de coordenação e capacitação. Há muitos lugares em que a condição de vida é aviltante.
Pessoas vivem como farrapos humanos. Como podemos achar isso normal?
Às vezes penso que cada um de nós poderia trocar de casa com um miserável por ao menos três dias, como na história do príncipe e do mendigo.
Com certeza passaríamos a ser mais ágeis, encontrando soluções para melhorar a qualidade de vida de todos. Como médica, trabalhando em hospital de indigentes, administrando postos de saúde na periferia de Curitiba, sempre via que as mães voltavam com suas crianças por causa dos mesmos problemas, que elas poderiam prevenir.
Sentia que lhes faltavam orientação, educação, carinho, noções simples e básicas de higiene, alimentação, cuidados com o filho. Eu tinha certeza de que essas mães, devidamente orientadas, poderiam mudar a história de sua família e do país a partir da criança.
Esse é o verdadeiro milagre da Pastoral da Criança: transformar essas mulheres em heroínas de nossos dias. Uma das coisas que têm a magia de me animar é ouvir testemunhos pessoais diariamente.
Eu penso sempre: "Isso não é obra minha, foi Deus que me inspirou. É obra dele, fui apenas seu instrumento". É assim que me sinto, olhando para mais de 1,5 milhão de gestantes e crianças acompanhadas por 150 000 voluntários em 3 334 municípios.
O Brasil pode acabar com a miséria.
Basta que haja uma decisão política para um trabalho conjunto articulado e planejado entre governo e sociedade. Mas qualquer projeto de combate à miséria só vai dar certo se os próprios excluídos se tornarem autores de sua ação libertadora. Eles devem ser sujeito, e não objeto, das ações. Não adianta fazer algo por eles.
É fundamental que eles tomem parte ativa no processo. Eles começam a ganhar auto-estima, a sair de uma condição de passividade para acreditar e lutar pela mudança da própria vida e da vida de sua comunidade.
Essa é a maior revolução de que o Brasil precisa.
E os excluídos são capazes disso e de muito mais. Necessitam apenas de capacitação, orientação e acompanhamento. Só assim poderão recuperar o valor humano latente.

Doutora Zilda Arns Neumann - Médica, pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança representante da CNBB noConselho Nacional de Saúde e conselheira da Comunidade Solidária

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